segunda-feira, 16 de junho de 2008

Raiz de Orvalho

Sou agora menos eu

e os sonhos

que sonhara ter

em outros leitos despertaram



Quem me dera acontecer

essa morte

de que não se morre

e para um outro fruto

me tentar seiva ascendendo

porque perdi a audácia

do meu próprio destino

soltei ânsia

do meu próprio delírio

e agora sinto

tudo o que os outros sentem

sofro do que eles não sofrem

anoiteço na sua lonjura

e vivendo na vida

que deles desertou

ofereço o mar

que em mim se abre

à viagem mil vezes adiada




De quando em quando

me perco

na procura a raiz do orvalho

e se de mim me desencontro

foi porque de todos os homens

se tornaram todas as coisas

como se todas elas fossem

o eco as mãos

a casa dos gestos

como se todas as coisas

me olhassem

com os olhos de todos os homens




Assim me debruço

na janela do poema

escolho a minha própria neblina

e permito-me ouvir

o leve respirar dos objectos

sepultados em silêncio

e eu invento o que escrevo

escrevendo para me inventar

e tudo me adormece

porque tudo desperta

a secreta voz da infância




Amam-me demasiado

as cosias de que me lembro

e eu entrego-me

como se me furtasse

à sonolenta carícia

desse corpo que faço nascer

dos versos

a que livremente me condeno




Mia Couto

Sem comentários: